sábado, 25 de agosto de 2012

Soberba



Sem mais nem menos, numa fria noite de inverno, cabeças começaram a explodir.

Não, não era tiro de espingarda cartucheira, nem de revólver com munição dum dum.

A coisa vinha de dentro do corpo, não sei explicar. A pessoa podia estar comendo, conversando, dormindo, que o negócio vinha de repente: PLOFT! – um som abafado, meio oco, que se abria num PLAFT rápido, molhado: como toalha encharcada lançada com força na parede.

O interessante é que era só a cabeça.

Em ambientes fechados, a cena era mais ou menos assim: PLOFT! PLAFT! E o corpo estrebuchava no chão, esguichando sangue pelo buraco do pescoço, enquanto as partes moles da cabeça (sangue, miolos) escorriam pelas paredes, e as mais pesadas (ossos, pele, cartilagens) se espalhavam pelo chão.

Eu mesmo vi dez cabeças explodirem. A primeira foi a de um sujeito nervoso que esbravejava a plenos pulmões numa reunião de condomínio, achando-se o dono do mundo. Eu até pensei na hora que um dos moradores, que era policial, tinha dado um tiro nele, de tanta raiva, mas não: como eu disse, a coisa vinha de dentro. O sujeito gritava: “Eu sou isso e aquilo, sou amigo de fulano e beltrano, tenho muita influência, vocês vão ver do que eu sou capaz” e PLOFT! PLAFT!

Outra vez foi com uma amiga de mamãe, D. Jandira (a empáfia em pessoa). Ela tomava café lá em casa e falava do filho dela, o Pedrinho ou Carlinhos, não sei, que segundo ela era um gênio, doutor em não sei o quê, tinha dois apartamentos de luxo na capital, um carro importado, falava inglês fluente, ia apresentar a pesquisa dele na Alemanha, na França e na Inglaterra, uma tese brilhante, muito respeitada nos meios acadêmicos e blá, blá, blá. E de repente PLOFT! PLAFT!

Mamãe levou um baita susto com a explosão. Arregalou os olhos, toda respingada de sangue, e começou a passar mal. Tossia e cuspia pedacinhos de ossos e miolos, que escorriam pelo seu rosto, enquanto eu tentava socorrê-la.

Algumas profissões eram mais atingidas que outras. Médicos e advogados, por exemplo, entraram em extinção. Sobraram poucos na cidade. (Uma prima minha, muito querida, que é médica, graças a Deus se salvou). Tive notícia de que, durante uma cirurgia, três cabeças de médicos explodiram juntas em cima do paciente, e que uma estudante de Medicina, que assistia ao procedimento, correu e se trancou no banheiro desesperada, para cinco minutos depois sua cabeça também explodir.

Vereadores e funcionários do alto escalão da Prefeitura também foram muito mais atingidos do que o normal. Numa sessão da Câmara para discutir a má gestão dos recursos públicos na Saúde, o cinegrafista da TV local filmou nada menos que quinze cabeças explodindo, uma atrás da outra. Isso porque, além dos vereadores, havia muitos médicos e advogados presentes, e também um juiz, que foi o primeiro da fila. (Foi um choque na cidade a morte desse magistrado, o velório ficou lotado, mas alguma coisa vinha me dizendo que aquela cabeça não ia se salvar de jeito nenhum). E segundo o meu primo Cleber, que estava na Câmara, a coisa aconteceu no exato momento em que o juiz apontou o dedo para um pobre coitado na platéia e perguntou: “Você sabe com quem está falando?”.

Há cinco meses nenhuma cabeça explode na cidade.

As pessoas estão mais quietas e introspectivas. Lêem mais. Estão se preocupando menos com o status social, com as aparências.

Até o famoso jornal de futilidades A City, que era a vitrine da alta sociedade local, quebrou, porque ninguém mais queria pagar para ter suas festas de aniversário, casamento, bodas de prata e de ouro publicadas ali.

Na minha família só cinco cabeças explodiram até agora: três homens e duas mulheres. (“Os mais cheios de si”, disse mamãe um dia, referindo-se a eles).

Quanto a mim, confesso que ainda estou com medo. Fico a maior parte do tempo em casa, sozinho, escrevendo, lendo, tomando café e ouvindo música.

Ontem foi meu aniversário de 36 anos.

Mamãe me deu de presente um livro de poemas da Florbela Espanca.

Mamãe gosta muito de poemas.

Ela diz que ler poemas torna a gente mais humilde e tolerante. Acho que ela tem razão.

Ao nos despedirmos, ela me abraçou e disse, sussurrando: “Leia o poema da página 36”.

Em casa eu o li, e até grifei o final, que me tocou muito:

Sonho que sou Alguém cá neste mundo...
Aquela de saber vasto e profundo,
Aos pés de quem a terra anda curvada!

E quando mais no céu eu vou sonhando,
E quando mais no alto ando voando,
Acordo do meu sonho...

E não sou nada!...

Flávio Marcus da Silva - Cadeira nº 1

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quinta-feira, 23 de agosto de 2012

Licença para viver



Naquele dia o professor não foi trabalhar. Acordou tarde, sem despertador, pois o havia desligado na véspera, após decidir que ao colégio, no dia seguinte, não ia de jeito nenhum, que lhe cortassem o ponto ou lhe dessem uma advertência, não importava. Despertou ao natural, na hora que o espírito e o corpo quiseram, se espreguiçando, coisa muito fora do normal, já que acorda todos os dias em sobressalto, morrendo de sono, engole o café, o pão, lava o rosto, escova os dentes e sai em disparada rua abaixo, para não perder o ônibus. Isso todos os dias, porque no sábado tem que ir à feira cedinho, dar limpeza no apartamento, lavar roupas, preparar aulas, corrigir exercícios, e no domingo está morto, completamente destroçado, a ponto de quase só poder respirar com a ajuda de aparelhos, o que não o impede de ir visitar a mãe e lhe preparar o almoço – ouvindo-a reclamar da vida o dia inteiro –, para o que às sete da manhã tem que pegar o ônibus, pois o trajeto é longo.

Naquele dia foi diferente, era sexta-feira, saiu da cama com o tempo livre, dez horários vagos para curtir, um dia só dele. Preparou duas torradas, do jeito que servem nas pastelarias de Portugal, terra que visitara uma vez, quando criança – nem se lembrava mais da cidade onde ficara, nem do quarto onde dormira, mas de sua memória nunca tinha saído o gosto daquelas torradas, grossas, com muita manteiga –, e para acompanhá-las fez um café forte, adoçado no ponto, que bebeu lentamente, sentindo o aroma, a quentura, o prazer revigorando o espírito, aquecendo a vida que amanhecia com uma luz diferente naquela sexta-feira. Não, a luz não. Era ele que estava diferente, não cumprindo um dever, uma obrigação. Quem jamais poderia imaginar, ele, tão responsável e correto, não cumprindo um dever! Ainda mais aquele, fundamental, pedra angular da sobrevivência, do sucesso, da respeitabilidade, que é trabalhar. Pois não o estava cumprindo, e – pasmem todos que o conhecem bem – não estava nem aí.

Terminou o café e ficou parado no meio da cozinha pensando no que fazer. Já nem se lembrava mais de quando tivera um tempo assim, inesperado, longo, só para ele – tirando as madrugadas de insônia, nas quais às vezes pegava um livro de seu gosto para ler, com os olhos ardendo, preocupado com o inevitável e terrível amanhecer. Ter aquele tempo só para ele era um estranhamento, um susto de prazer, um acordar no paraíso sem nenhuma informação sobre as opções de lazer para o dia – se é que opções e dias há no paraíso –, como “Visite a piscina de fluidos celestiais e renove suas energias”. Não, ele realmente não sabia o que fazer.

Até que respirou fundo por um ou dois minutos e lembrou-se dos livros, das músicas, dos filmes... Há quanto tempo não lia um livro? Para as aulas já não lia mais nada, estava tudo pronto na cabeça, informações que ele fazia os alunos engolirem todos os dias para depois vomitarem nas provas, ano após ano, sempre a mesma coisa. Não, não queria saber de aulas nem do que lera para prepará-las, mas de livros escolhidos por prazer, deliciados sem pressa. Com muito custo lembrou-se do último que lera assim: “O Encontro Marcado”, de Fernando Sabino. E lembrou-se também de nomes de autores que nunca tivera tempo de ler e que naquele momento ressurgiam como promessas de futuros deleites: Rubem Fonseca, Clarice Lispector, José Saramago... E outra coisa... Há quanto tempo não beijava uma mulher?...

Foi então que, pensando em mulheres e livros, ele concluiu que precisaria de muito mais tempo livre, uma licença de quinze dias, um mês, dois meses, para o que teria que arranjar um atestado médico – daqueles fajutos, que seus colegas apresentam quando querem emendar a quinta-feira com o domingo –, e depois se submeter a uma perícia médica, alegando talvez depressão em último grau...

Mas pensaria nisso depois.

Flávio Marcus da Silva - Cadeira nº 1

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domingo, 19 de agosto de 2012


CONFISSÃO

Márcio Simeone
Cadeira n.º 8

Se andei pelo mundo assim, desacorçoado, é porque cometi grave falta. Submeti-me à intensa e constante clareza, sem me dar conta de que tanta luz me paralisava e cegava. Todas as luzes estavam sempre acesas e já não me permitiam sequer o repouso. Fui apagando uma a uma para deixar, no fim, apenas uma pequena lanterna, suficiente para não mergulhar na mais profunda escuridão. Para mim esse lume tímido transformou-se, logo, na mais bela das descobertas. Tudo em volta se encheu de sombras, desenhando em minha mente os mais belos sonhos. Daí por diante meus olhos foram se acostumando e achei, com assombro, a beleza dos meio-tons, os prazeres dos devaneios, para ver, a média luz, os interstícios, os entremeios, antes desconhecidos. Encontrei na aurora meu momento e meu sentido: nem tudo, nem nada. Ali, simplesmente, onde o dia busca ser e a noite ainda é, na plácida harmonia dos eternos devires, o que ainda sou se mistura, sem conflitos, com o que arrisco ser. Se assim amanheço, caminho seguro pelo dia luminoso, certo de encontrar, em mais ou menos meia jornada, o conforto do lusco-fusco. Nem fim, nem começo. O brilho mínimo e pálido da lanterna estará ali até que sobrevenha o cansaço, meus olhos mergulhem dentro de mim e eu seja.