domingo, 30 de dezembro de 2012

Semelhanças de fatos




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Li um texto de Rachel de Queiroz com o título “Ah, a vaidade literária!” e nele ela divaga, vai ao passado, lembrando fatos relacionados com o tema que ela escrevia. Outras vezes começava a desviar do assunto, narrando um fato de que havia se lembrado. Pouco depois voltava ao tema dizendo: “Mas estávamos falando em escrever..” e com a maestria tão própria dela tudo caminha de uma maneira agradável, que prende o leitor o tempo todo. É como se ela estivesse a nossa frente conversando e muitas vezes parece até que fazemos parte da conversa, pois ela usa a primeira pessoa do plural, como no último trecho citado.

 Nesta prosa boa, senti-me numa das noites de inverno lá da fazenda, reunida com todas as pessoas da casa na beirada do fogareiro, que era um recipiente de metal com formato arredondado e se sustentava em três pés. Nele se colocavam brasas para aquecer as pessoas. Ali a conversa era anacrônica, ia ao passado e voltava ao presente com a maior agilidade. Nós, crianças, muitas vezes sem conhecer os personagens, nos envolvíamos com as histórias.        

Numa dessas divagações, Rachel se lembra do cargo que existia nos tempos idos e que se chamava “secretário de jornal”. Era, como ela disse, muito mais temível que o próprio dono do jornal.  Todos os textos tinham de passar pela sua correção e, pelo que ela narra, a caneta dele funcionava como uma temível censura. O que ele riscasse não tinha mais salvação. Ninguém poderia questioná-lo. E ela narra: “ Me lembro de certa vez, quando colaborava no findo Correio da Manhã, vi devolvida, riscada a lápis vermelho, uma frase iniciada por pronome oblíquo: Me parece... O papel me voltou rodeado por um círculo vermelho, como um sol de fogo. E quem o traçara fora o próprio secretário, o dr. Costa Rego em pessoa.  Meninas são atrevidas, e eu ousei replicar (em lápis azul) – Mas o Mário de Andrade escreve assim...” “A senhora não se chama Mário de Andrade. Corrija o texto.” “Com a mão de revolta, corrigi o texto para Parece-me. Acho que foi neste dia que se agravou o meu surto comunista.”

            Ao ler isso, lembrei-me de um caso semelhante acontecido comigo. A minha professora corrigiu uma vírgula mal colocada num texto que eu escrevera. Falei com ela que eu achava que nem sempre as vírgulas deveriam seguir as regras. Que a pessoa que  escrevia deveria ter a liberdade de colocar a pausa onde bem entendesse, e completei: “A Clarisse Lispector determinava o lugar que ela queria e não admitia que o editor de seus livros mudasse ou suprimisse uma vírgula. Dizia que somente ela sabia onde era necessário dar uma pausa”. Ela olhou-me, deu uma risadinha e falou: “Você não é a Clarice Lispector!” Respondi: “ Mas seria muito bom se eu pudesse ter pelo menos um pouco da liberdade que ela tinha.”

            Admito ter dúvidas até hoje do correto emprego de vírgulas. O professor Pedro Moreira é incansável na luta de me mostrar as razões que justificam a sua posição. Quando levo textos para ele corrigir, sempre me dá pacientes explicações. Às vezes coloco o raminho no lugar onde não é necessário e, em outras, eu não o coloco onde é indispensável. O termo raminho é correto. Foi ele quem me disse que vírgula, em latim, tem esse significado. Não acho que seja tão grave um raminho a mais ou a menos ou fora do lugar. Creio que seria pior se o erro fosse na colocação das aspas, pois de acordo com ele, aspas, em suas origens, significam chifres. Imagine que grave seria colocar chifres em lugares errados. Aliás os chifres hoje não são admitidos nem onde eles são originários. Os fazendeiros mocham o gado e fogem das moscas-de-chifre.

Mas a verdade é que preciso aprender, sim, pois necessito das vírgulas o tempo todo e, como não sou a Clarice Lispector, tenho que me submeter às imposições da gramática.

Déa Miranda
Cadeira nº11
Patrono: José Gastão Machado
               

terça-feira, 25 de dezembro de 2012

Uma nova sede para a Biblioteca Pública de Pará de Minas



Eu tenho uma dívida impagável com a Biblioteca Pública Professor Melo Cançado, de Pará de Minas. Devo a ela o leitor que sou hoje e todo o prazer que isso me proporciona – que é imenso, intenso e maravilhoso.

Tudo começou em 1985. No início minha mãe me levava, mas logo passei a ir sozinho, quando voltava da escola, cheio de expectativa e curiosidade. A Biblioteca ficava no prédio da antiga rodoviária, um local pequeno e pouco convidativo, inadequado para abrigar todo aquele universo de sonhos e aventuras que, adormecidos, aguardavam a chegada dos leitores. Mas eu nem ligava para o lugar; o que me interessava eram os livros, os escritores e suas histórias, que eu devorava com enorme prazer.

Entre 1985 e 1990 eu li uma infinidade de livros tirados daquelas estantes, a maioria de Marcos Rey, Stella Carr, Lúcia Machado de Almeida, Marion Zimmer Bradley, Julio Verne e Agatha Christie. De Agatha Christie eu li a obra completa (uns 70 livros ou mais) em dois anos, a maioria emprestada da Melo Cançado. Ali também descobri o escritor mineiro Rubem Fonseca, que eu leria com uma avidez desesperadora entre 90 e 92, degustando cada frase, cada cena, cada personagem (o seu romance “Bufo & Spallanzani” me marcou tanto que eu o li três vezes).  

De lá para cá nunca deixei de frequentar aquele recanto paradisíaco, no prédio da antiga rodoviária e, depois, em sua atual sede, na Casa da Cultura. E tenho muito orgulho em dizer que a minha filha de oito anos já tem a sua ficha e é leitora assídua dos livros da seção infanto-juvenil. Pena que o espaço continua inadequado: pequeno, escuro e abafado.

Não só em quantidade, mas também em qualidade, a Melo Cançado surpreende. De clássicos a best-sellers – contos, romances e poesias –, tem de tudo ali, para todos os gostos. Só não dá gosto frequentar o lugar. O paraíso está nos livros, não no local que os abriga: não tem mesas e cadeiras, os corredores são sombrios e apertados, e a seção infanto-juvenil chega a dar medo nas crianças – embora continue ali, em suas estantes, grande parte dos livros que me encantaram nos anos 80 (de vez em quando eu os folheio, relembrando o passado, cheio de saudade...).

Sei que existe um excelente projeto para construir uma nova sede para a Biblioteca Professor Melo Cançado. Infelizmente ele não foi executado – não por incompetência da Secretária de Cultura, Maísa Lage (que realizou, juntamente com o Diretor de Cultura, José Roberto Pereira, e sua equipe, um trabalho memorável na área cultural em Pará de Minas), mas porque outras ações foram vistas como prioridades e, por isso, não houve tempo. Infelizmente.

Peço então ao novo Secretário de Cultura, Luciano Pereira, que dê uma atenção especial à nossa Biblioteca. Ela precisa sair da Casa da Cultura. Aquele espaço não é adequado.  Há ali todo um universo de sonhos e magia que merece um local digno da sua importância, da sua história em Pará de Minas e do que ele representa para as vidas de inúmeros leitores.

Sem querer me gabar, naquelas estantes há vários livros doados por mim, a maioria coisa boa, literatura de qualidade, em ótimo estado de conservação. Continuarei doando até morrer. Onde quer que esteja a Melo Cançado, seja qual for o prefeito ou o Secretário de Cultura, ela me terá como fiel doador. Assim vou pagando minha dívida impagável...  Só não quero morrer sem ver a nova sede. Se isso acontecer, voltarei para puxar o pé das autoridades responsáveis. Ah se voltarei...

Flávio Marcus da Silva - Cadeira nº 1 

quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

Papai Noel para poucos



Querido Papai Noel,

Neste ano eu me comportei direitinho. Obedeci à mamãe e ao papai, não briguei com a minha irmã e usei o dinheiro da minha mesada com muita responsabilidade. O papai me dá setecentos reais todos os meses para eu gastar com o que eu quiser, mas eu economizo duzentos reais por mês. (É que eu quero juntar três mil reais para levar para a Disney no ano que vem e comprar um monte de coisas legais para mim).

Na escola eu também fiz tudo direitinho. Meus colegas fizeram muitas coisas erradas, mas eu não. Todos os dias eles insultavam um outro menino, que veio estudar na nossa sala com uma bolsa de estudos, porque ele é pobre e negro, coitado. Eles batiam nele e o chamavam de um monte de coisas feias, como urubu, filhote de cruz credo e favelado; e ainda chamavam a mãe dele de prostituta e o pai de drogado e traficante. Só que eu não. Eu ficava caladinho. Eu não conversava com o menino porque não pegava bem (a galera ia ficar me zoando e ia acabar me isolando do grupo); só a professora e a diretora falavam com ele. Mas eu nunca bati nele, nem o chamei de nomes feios.

De vez em quando umas pessoas muito pobres tocam o interfone daqui de casa pedindo um prato de comida ou um pedaço de pão. Quando sobram restos de comida nos pratos, eu junto tudo, embrulho num jornal e levo para eles. Quando não sobra nada, eu pego uns dois ou três pães (que ficam guardados no armário a semana inteira para endurecer e a empregada poder ralar para fazer farinha de pão) e jogo para eles por cima da grade. Um dia um menino que estava com eles me pediu água. Mesmo correndo o risco de sujar o piso de granito da mamãe, eu abri o portão e deixei o coitado usar a torneira do jardim. O meu pai até chegou na hora e empurrou o menino para fora, chamando-o de pivete imundo. Eu fiquei muito triste com o papai.

Ontem esteve aqui em casa a minha tia Jaciara. Ela me contou que só existe um Papai Noel de verdade: o senhor. Ela disse que aquele Papai Noel que fica na casinha da Ascipam é de mentira; que o Papai Noel de verdade é um espírito superior, que só visita as residências de pessoas superiores, como nós, que merecem ser presenteadas. Foi aí que eu entendi por que os alunos bolsistas lá da escola, que são inferiores, só ganham de Natal brinquedos ruins, enquanto nós, superiores, ganhamos brinquedos bons e caros. É que quem dá os presentes para as crianças pobres são os próprios pais delas (ou alguma instituição de caridade ou empresa), que não têm muito dinheiro, enquanto, no nosso caso, é o senhor mesmo, que vem com as suas renas mágicas visitar as nossas casas.

Aproveito esta carta também para agradecer o helicóptero de controle remoto, o computador, o tênis Puma e o celular que o senhor me deu no ano passado. Muito obrigado, Papai Noel. Gostei demais! O helicóptero ainda está funcionando, mas eu não brinco mais com ele porque fiquei enjoado, então eu o empresto ao filho da empregada todo sábado de manhã. O senhor precisa ver a alegria do menino! O computador já não me serve mais, porque de uma hora para outra ele ficou muito devagar e o papai teve que comprar outro. O tênis eu tive que parar de usar porque o Eloi, meu colega, chegou com um muito mais caro do que o meu, então eu tive que pedir ao papai para comprar um de uma marca ainda mais cara, para eu não ficar para trás. E o celular, o senhor sabe, não dá para ficar com o mesmo por muito tempo, no máximo dois ou três meses, porque sempre aparece um mais avançado, com design mais moderno e mais caro lá na escola, e a gente tem que trocar o nosso, para ninguém ficar zoando a gente.

Neste Natal, eu peço ao senhor um laptop (o melhor que tiver no mundo), porque quinze colegas meus já têm os seus e eu preciso ter o meu também; uma viagem ao Japão, porque até hoje ninguém na minha sala foi ao Japão; e um celular novo (também o melhor do mundo), porque eu não posso ficar para trás.  

Ah! Já ia me esquecendo! Se for possível, eu queria confirmar uma coisa com o senhor. É que ontem, junto com a tia Jaciara, veio nos visitar o tio Tomás, que é deputado lá no Congresso. Ele ficou o tempo todo rindo (com a mão naquela pança enorme que ele tem), bebendo um vinho importado da mamãe (reservado para ocasiões especiais), e disse que este ano o Papai Noel DELE vai chegar bem mais gordo (e de jatinho), por causa de um aumento de mais de 60% no salário que eles mesmos se deram lá no Congresso. A tia Jaciara tinha acabado de me contar a verdadeira história do Papai Noel (ou seja, do senhor), e na hora só pude crer que o tio Tomás tinha se equivocado. Como é possível que ele possa ter um Papai Noel só dele (mais gordo do que o dos outros e que chega de jatinho e não de renas mágicas) se só existe um Papai Noel: o senhor?

Um forte abraço, blá blá blá...

Flávio Marcus da Silva - Cadeira nº 1

terça-feira, 18 de dezembro de 2012


                                                       ENTÃO É NATAL!

  

Então é NATAL! Natal de otimismo, e não de consumismo;

Então é NATAL! Natal de emoção, e não de corrupção;

Então é NATAL! Natal de um mito, e não de um conflito;

Então é NATAL! Natal da vitória, e não da discórdia;

Então é NATAL! Natal da felicidade, e não da contrariedade;

Então é NATAL! Natal de um tempo, e não de um tormento;

Então é NATAL! Natal de valorização, e não de persuasão;

Então é NATAL! Natal de glórias, e não de falsas memórias;

Então é NATAL! Natal da criação, e não da perdição;

Então é NATAL! Natal da paixão, e não da destruição;

Então é NATAL! Natal da solidariedade, e não da vaidade;

Então é NATAL! Natal de afinidades, e não de contrariedades;

Então é NATAL! Natal de alegrias, e não de folias vazias;

Então é NATAL! Natal de bondades, e não de perversidades;

Então é NATAL! Natal de paz, e não de desilusão daquilo que se faz;

Então é NATAL! Natal do nascimento, e não do esquecimento;

Então é NATAL! Natal de merecer, e não de se engrandecer;

Então é NATAL! Natal do milagre, e não do massacre;

Então é NATAL! Natal da coragem, e não da miragem;

Então é NATAL! Natal do conserto, e não do tropeço;

Então é NATAL! Natal do amor, e não do rancor;

Então é NATAL! Natal de um menino ser, e não do poder;

Então é NATAL! Natal da justiça, e não da preguiça;

Então é NATAL! Natal de fantasias, e não de nostalgias;

Então é NATAL! Natal de uma flor, e não de uma dor;

Então é NATAL! Natal de uma nova esperança, e não de uma falsa festança;

Então é NATAL! Natal de harmonia, e não de agonia;

Então é NATAL! Natal da doação, e não da escravidão;

Então é NATAL! Natal da sobriedade, e não da inverdade;

Então é NATAL! E que esses nossos sonhos sempre vivos, são a esperança para um amanhã de justiça e paz cada vez mais próximos.

 
UM FELIZ E SANTO NATAL!
 

QUE DEUS ABENÇOE A TODOS! 

 

Ailton José Ferreira

Membro da Academia de Letras de Pará de Minas. Cadeira nº 07

Policial civil aposentado, Bel. Direito, Pedagogo, Escritor e Educador.

domingo, 9 de dezembro de 2012

O CÉU ESTÁ NO CAMINHO


Márcio Simeone
Cadeira n.º 8

Em lugar improvável e em hora imprevista veio o Salvador. Em meio de caminho a lugar qualquer, em lugar nenhum. Fora do mapa nasceu um Menino-Deus sem chão, sem parte, sem nada de seu senão sua vida errante. Prenúncio de futuro, eterno migrante rumo a seu destino. Logo o Deus-Menino vai aprender a ler o que se inscreve no chão pedregoso e o que desenha o sol nas terras em brasa. Amanhã, desperto pelo sofrimento do mundo, vai sair em viagem, amante da estrada, em incerto destino. Pois assim estava escrito: um Homem-Deus peregrino. Vida em trânsito lembra: tudo passa e tudo está em toda parte.  Andará por terra inóspita. Percorrerá o deserto, atravessará os rios, adentrará as cidades, criando o céu, sonhando com o paraíso.

Tantas famílias sagradas vagam como Ele. Gente andarilha, que tem chão de pisar mais que água de beber. Triste saga de retirantes, vida rude de pequeninos, a quem resta crer e confiar em terra tão prometida, em céu tão distante. Mal nasce aquele menino e já se adivinha o bem-aventurado dia em que vai proclamar na planície e nas montanhas a Boa-Nova a este povo. Mas a palavra ainda demora. Ele ainda dorme em paz seu sono sagrado de criança. Porém, uma estrela fulgurante, vinda do nada, aponta uma direção, aqui, agora. Já se inicia a marcha: somos todos peregrinos, porque o céu está no caminho...